Entrevista a Malangatana Valente Ngwenya
P- Queria pedirlhe que falasse da sua vida. Pode ser?
R- Chamo-me MALANGATANA VALENTE NGWENYA. Nasci em Mapulene, que fica em Matalana, no distrito de Marracuene. Para ser mais preciso, direi que nasci lá mais para o interior, um pouco mais afastado daquilo que era a zona dos <<civilizados>> .Dizem que nasci às 5 horas da manhã e que a minha mãe me teve debaixo de cajueiro. Seria o dia 6 de Junho de 1936, segundo informações do vovô João Ngwenya, que era um autentico registador de nascimentos e de outros acontecimentos da aldeia. Quando nasci deram-me o nome de Malangatana, o Valente vem depois de eu crescer, e Ngwenya é o meu apelido, toda a minha família tem este nome. Cresci na zona de Matalane, onde vivi sobretudo com a minha mãe e, de vez em quando, com o meu pai. O meu pai era mineiro. Trabalhava na África do Sul pelo que vinha poucas vezes a Moçambique. Mas, quando vinha, tanto podia ficar 3 meses como mais ou menos tempo. Cresci, pois, sob os cuidados da minha mãe.
Malangatana Valente, junto ao atelier de Pancho Guedes. |
Como os meus pais não eram religiosos e fui levado para uma escola da missão suiça de Matalana, a minha mãe teve de pagar 100 escudos pela minha matrícula. Era o que pagávamos anualmente. Se fosse filho de alguém religioso, não teria de pagar aquela quantia. Estive aqui pouco tempo, porque a escola, em finais dos anos 40, creio que em 1947, foi encerrada. assim aconteceu, porque sendo uma escola protestante da missão suiça, o Governo Colonial mandou fechar todas as escolas que não fossem católicas ou do ensino oficial português. Depois disto fui para outra escola, para a escola católica D. Nuno Álvares Pereira, da Magaia.
Nessa altura, aminha mãe estava mentalmente doente e foi viver exactamente na zona onde havia essa escola. Fiquei sob os cuidados da minha tia paterna. Ali estudei e fiz a 3ª classe rudimentar, porque os negros, nessa altura, duas terceiras classes: a terceira classe rudimentar e a terceira classe elementar. E só depois é que faziam a quarta classe. Quando fiz a terceira classe elementar, não pude fazer a 4ª classe, porque não tinha condições. Mas, enquanto estava a fazer a 3ª classe, tornei-me ajudante do professor, porque, na sua opinião e também na da pároco de Marracuene, Armando da Encarnação da Fonseca, tinha capacidade para ensinar outros. Mas essa capacidade já a trazia da Escola da Missão Suiça, onde o ensino era, de facto, rigoroso e disciplinado.
E pronto em termos de estudo, terminei aqui!.
Trabalhei em várias coisas. Fui criado de bébés de famílias portuguesas, onde tive de facto muita experiência no tratamento e no amor pela criança(ainda que já tivesse trabalhado com crianças estava no mato)
Em 1952, deixei de ser criado de bébés e fui trabalhar para um clube. Era o Clube Civil de Lourenço Marques. Mais tarde, ficou só Clube de Lourenço Marques. Esse clube era muito interessante. Aprendi, lá, que entre os brancos havia o branco de primeira e o branco de segunda. Do Clube de Lourenço Marques só faziam parte os brancos de primeira, Em contrapartida, da Associação dos Naturais de Moçambique não podiam fazer parte esses brancos de primeira. Mas voltemos ao Clube de Lourenço Marques. Para se entrar nele como sócio era preciso haver uma votação, feita com duas caixas, tigelas ou bandejas de bolas pretas ou brancas. De modo que, quem tivesse mais bolas pretas que brancas não entrava para o clube. Foi quando estava neste clube que fiz a 4ª classe. E mais tarde, ainda neste clube, comecei a ir estudar para a escola industrial. Não era fácil. Sabe que, para um indígena poder andar à noite, tinha que ter sempre um cartão (nesse caso, o cartão da escola servia) ou então uma licença. Pois, doutra maneira, era preso.
Mas é também neste clube que começo a ter um envolvimento, não profundo mas já sério, na política, porque entre nós, criados, já havia alguns que tinham sensibilidade política. Estamos em finais de 1950. Já se ouvia falar de Julius Nyerere, de , de Tom Mboya, de N`Krumah. Lembro-me de, quando ainda trabalava no Clube de Lourenço Marques, ter ido a uma livraria comprar o livro de N`Krumah, The Law of Independemce. E nessa altura, ainda não tinha grande conhecimento da língua inglesa. Mas, para mim, era importante ter esse livro comigo. E fui lendo. Comprei, também, um livro sobre Jomo Kenyatta, um estudo famosos sobre a sua formação. Mais tarde, comprei outros livros. Ainda a trabalhar no clube tive a sorte de ser levado para um sítio chamado <<núcleo de arte>> para continuar a fazer pintura.
De pé José Craveirinha, em Lourenço Marques, nos anos 50. Sentado em calções o poeta Rui Nogar |
Ainda a trabalhar
Ainda como criado tive a sorte de participar em encontros de intelectuais, Confesso que, nessa altura, pouca coisa entendia das conversas que tinham, embora percebesse quando falavam de Jomo Kenyatta e doutros. E quando falavam do Magrebe também procurava compreender. Foi nessa altura que comecei a ser visto no meio dos intelectuais, alguns dos quais até já tinham sido presos pela PIDE.
Ainda nos anos 60, quando trabalhava no Instituto de Investigação Médica, fui procurado pela Polícia. Procurado, porque ia frequentemente ao Centro Associativo dos Negros de Moçambique
e já estava envolvido no grupo clandestino da FRELIMO.
P - Falando do Centro Associativo dos Negros de Moçambique, quem conheceu lá?
R - Comecei por ir lá, muitas vezes, sem ser sócio. Ia lá, porque era um sítio onde se dançava. Mas nunca participei nos grupos dos estudantes. Só mais tarde, pela mão da D.Ana Tembe, mãe de Cristina Tembe, é que frequentei o Centro, para dar apoio a nível das artes.
Fiz lá algumas >>brincadeiras>> de pintura e organizámos muitas exposições. Lembro-me que, em 1962, pintei um carro alegórico de Carnaval.
Era um camião enorme, que chamava muito a atenção quando circulava pela cidade. Obviamente que conheci lá algumas pessoas, entre elas o Luís Bernardo Honwana, com que não tive grande convivência. Conheci também a Cristina Tembe (que foi presa comigo), a irmã Judite, a Ana Magaia e outras pessoas.
P - E conheceu o Ebenizário Guambo?
R - Conheci-o muito bem. Era do Centro Associativo dos Negros de Moçambique. Foi preso comigo e com o Matias Mboa, o Rogério Djawana, o Rodrigues Chale, o Craveirinha, o Boneto Magaia, o Rui Nogar. Mas, no processo político, aparece mais ligado ao Drº Domingos Arouca e ao Manuel Ceita.
Malangatana a expor as suas obras em 1968 |
<< Esse não pode ir agora>>
Um outro agente declara:
<<Não saímos daqui sem esse homem. Onde é que ele está?>>
O outro continua a fazer sinais para não insistirem. Mas, nessa altura, nem eu nem os outros presos nos apercebemos de que aquilo era por causa do Ebenizário Guambo, que já tinha sido morto. Estou agora convencido de que o Ebenizário morreu ali, na Vila Algarve, entre 30 de Maio e 1 de Junho. De facto nunca mais foi visto.
Passado pouco tempo soubemos que, de facto, o Ebenizário Guambo tinha morrido.
P - Quem foi que vos avisou que o Ebenizário Guambo tinha morrido?
R - Foi um carcereiro. Era muito boa pessoa, era a nossa salvação, pois através dele que concactámos uns com os outros. Não me lembro, agora, do nome deste carcereiro. Mas lembro-me de que era pastor.
Comentámos, na altura, que por essa razão é que o Ebenizário não tinha regressado connosco. Ouvimos, depois, dizer que a PIDE tinha <<espalhado>>, que ele tinha morrido com uma
avitaminose. Mas, sem dúvida, que foi espancado e morto por eles.
A célebre Vila Algarve. Sede da PIDE, em Lourenço Marques |
P - Como é que o Malangatana é preso? E o que leva a PIDE a prendê-lo?
R - Bem, quando sou preso já estava ligado ao grupo da 4ª Região Militar. A 4ª Região Militar fora formada por Joel Maduna Chinana (Joel dos Santos Monteiro), Matias Mboa, Lameque Michangula, Daniel Malhayeye, André Manjoro, Jossefate Machel e um outro, de que não lembro do nome, mas que foi um guerrilheiro importante. Ah! Já me recordo de parte do nome. Havia dois Ibrahimo, um que tinha casa na Suazilândia e um outro que tinha ligações ao Maduna Chinana. Era este Ibrahimo, que andava de um lado para o outro e estava ligado ao Craveirinha.
De maneira, que em 1963, acho que em Dezembro, começa a haver rusgas, seguidas de uma série de prisões.
Eu, o Craveirinha e mais alguns saímos da Suazilândia, onde ficámos algum tempo. A certa altura acharam que não existiam condições para seguirmos em frente. Houve, pois, a sugestão de que eu regressasse. Muito receoso, lá voltei. Escusado será dizer que, passados uns dias, fui preso. Fui preso de dia, no local de trabalho, o Instituto de Invetigação Médica. Outros já estavam presos. O Craveirinha foi detido mais tarde.
P - Para onde foi levado? Para a Vila Algarve ou para Sommershild?
R - Primeiro íamos à vila Algarve, para se tratar do registo. E só depois para Sommershild.
P - Durante os interrogatórios sofreu alguns espancamentos ou tortura?
R - No meu caso não houve espancamento. O grupo que foi mesmo massacrado foi o que estava no Campo d Mabalane, o <<Grupo dos 75>>. Mas, em Sommershild, também houve alguns casos de espancamentos.
Na sala de interrogatórios ouviam-se gritos e gemidos. E na cela, sempre superlotada, era necessário passar chávenas de chá quentes pelo corpo dos espancados.
P - Apanharam-nos com alguma coisa que justificasse a sua prisão? Havia uma acusação concreta?R
R - Não. A única justificação era o facto de saberem que estávamos envolvidos com o grupo de guerrilheiros que tinham vindo de Dar-es-salaam para criar a 4ª Região Militar. Não tinham documento algum que o provasse. Mas estavam certos. Pertencíamos à FRELIMO.
Nesta altura foi, tabém, preso o João Reis, que era editor do jornal Tribuna e que depois criou o Jornal. Sabiam que ele e o José Craveirinha estavam envolvidos connosco.
P - Nunca saiu de Sommershild ?
R - Só quando fui para a Machava.
P - Então como era a cela? Era uma cela individual ou colectiva? Deve lembrar-se, porque até fez desenhos.
R - (Risos) A cela 4, mais conhecida por <<state mine number four>>, sabe, é uma mina na África do Sul, porque ali havia pessoas que tinham trabalhado na África do Sul. Era uma cela onde podíamos ser trinta, quarenta, cinquenta ou até sessenta. Claro que ninguém queria um hotel de duas ou três estrelas. Mas para as pessoas estarem mais ou menos bem, a cela devia albergar apenas de quinze a vinte pessoas, não mais. Era, pois, uma cela exígua para tanta gente.
P - A cela 4 tinha sanita? E água corrente?
R - Não, não tinha. Para urinar existia uma << jarra >>, logo à entrada, ao lado de uma mesa para onde atiravam as laranjas e o pão, que se misturavam no chão com os pingos da urina. Até tenho isso desenhado.
Água tínhamos de pedi-la, e era servida de acordo com a vontade do carcereiro.
Na cela, embora tentássemos manter uma certa higiene, tínhamos percevejos e era impossível evitar os maus cheiros.
Os espancados vinham para ali. Só não vinham se ainda houvesse interesse em interrogá-los, sobretudo quando tinham interesse em interrogar esse elemento sozinho.
P - Nunca esteve em celas disciplinares?
R - Não. Estive numa cela em que só cabiam duas pessoas, onde o José Craveirinha já podia ter companheiro, fui viver com ele para aquela cela. E mais tarde juntou-se a nós o Rui Nogar. Passámos a ser três na mesma cela.
Havia, contudo, celas disciplinares, onde se passava a pão e água e existia a célebre lâmpada em cima. Mas essa cela não a conheci.
P - A cela onde esteve com o Craveirinha e o Rui Nogar tinha cama ou dormiam no chão? como era?
R - Tinha beliches. Esta cela não tinha mais que dois por três metros. Era pequena, muito pequenina.
P - E essa onde estiveram os três tinha lavatório e sanita?
R - Era preciso bater à porta, para ir à casa de banho. E, de acordo com a vontade de carcereiro, a pessoa era autorizada ou não a ir à casa de banho, mas sempre com muita dificuldade.
P - Em relação às quetões de higiene, só falta saber se podiam tomar banho
R- Tomávamos banho à noite, sobretudo de madrugada, às quatro da madrugada e com água gelada. Não podíamos exigir mais e habituámo-nos. Mas não deixámos de tomar banho.
P - Como era a alimentação? Quantas refeições tinham?
R - O preso podis almoçar e jantar. A comida vinha de uma pensão. Era feijão com carne ou peixe, ou massa com carne. A comida não era muito boa, mas comia-se. Ninguém deixava de comer.
P - Mas parece que depois a comida vai piorar?
R - Vai piorar sobretudo na Machava. Ali até houve uma tentativa de greve, os presos a recusarem a comida. Até tenho um quadro que pintei isso, mas não está comigo.
Cadeia da Machaca. Presos políticos e comuns a receberem uma refeição.
P - Foi, então para a Machava. Por quê?
R - Fomos todos transferidos para a Machava
P - Quando é que a sua família soube que estava preso?
R - Penso que no mesmo dia. Como fui preso de dia e nolocal de trabalho, deve logo ter havido alguém que foi avisar.
P - Quando é que começa a receber as visitas da família?
R - Verdadeiramente, as visitas só eram aceites depois de se terem completado o interrogatório. N a altura já era casado e tinha três filhos. Eram pequeninos. Mas é engraçado que o meu filho mais velho, o Mário Ngwenya, quando completei cinquenta anos, fez uma intervenção em que se lembrava perfeitamente de quando foram buscar o pai, pela segunda vez, para a cadeia. Era, então, muito pequeno, mas lembrava-se perfeitamente.
Isto foi depois do julgamento e depois da PIDE ter recorrido da sentença para o tribunal. Quando fomos julgados foi o grupo de advogados ligados ao Movimento dos Democratas de Moçambique que nos defendeu.
P - Quem é que o defendeu?
R -Diria que a defesa foi colectiva. Os advogados que nos defenderam foram muito coesos.: os doutores Almeida Santos, Santa Rita (extraodinário), Adrião Rodrigues, Raposo Pereira, Antero Sobral, Pereira Leite, (fez um trabalho extraodinário durante o 7 de Setembroe Rui Baltazar. Penso que não falta ninguém. Não queria que faltasse alguém, mas se falta os meus colegas logo lhe dizem.
Cada preso tinha mais ou menos o seu advogado. O meu advogado foi o Drº Antero Sobral. Mas nenhum advogado falava só sobre o seu preso, falavam sempre sobre todos. E também não há nenhum advogado que se comporte individualmente, nunca pronunciavam o <<eu>>, porque todos queriam fazer a defesa em grupo. Falta-me aqui um advogado e é pena, não queria que isto acontecesse.
Drº José Santa Rita em 1962, em Lourenço Marques, com colegas |
R - Quando saímos, os advogados protegeram-nos e ficámos ainda uns meses em casa. O grupo todo, menos os que tinham apanhado logo pena, caso do Joel Maduna Chinana e de outro.
Mas, passados seis meses, a PIDE foi buscar cada um a sua casa.
P - Qual a razão para a PIDE vos ter ido buscar?
R - O promotor de justiça recorreu da sentença. Mas gostaria de dizer uma coisa. Se não tivessemos um grupo de advogados como aqueles, não teríamos ficado sequer um dia em casa. A PIDE não teve hipótese, graças à força dos nossos advogados.
Só depois da resposta do Supremo é que fomos presos novamente. Estivemos presos mais seis meses.
P - Esclareça-me, por favor. Da primeira vez que é preso vai para a cadeia de Sommershild, vai à Vila Algarve para os interrogatórios e, depois, vai transferido para a Machava, é isso?
R - Sim, foi isso. Na Machava, de imediato. São os mesmos advogados que tratam de tudo.
P - Como é que foram tratados nesta segunda prisão? Houve represálias?
R - Não. Éramos mais ou menos <<intocáveis>>, já não havia interrogatório. Foi só ficarmos à espera do segundo julgamento. Mas a espera foi de seis meses. Não há nenhum interrogatório, nem sequer vai haver confrontações com outros que foram presos mais tarde.
Mas foi quando estavamos na Machava, desta segunda vez, que soubemos da morte de Joel Maduna Chinana e do outro. só soubemos que o Joel e o grupo com quem estavam se recusaram a estar de pé quando içaram a bandeira portuguesa e tocaram o hini nacional português. O Abadia Mulhangue (que militou muito tempo comigo e também é pintor) e outros assistiram à morte dele. Dizem que ficou na cela durante muito tempo sóa pão e água. O pior foi a fome. Morreram assim o Joel e outro jovem, que até tinha feito o 7º ano do liceu. Era o Mundawo falta-me o outro nome. Era um jovem muito inteligente. Já viu, deixados só a pão e água! Eram vistos pelos outros presos, dizem que a PIDE os deixava ir ao recreio de propósito. E aí todos ficavam admirados, porque pareciam anões. Rornaram-se pequenininhos e andavam como se fossem bonecos. ali, nem era preciso espancar. Deixaram-nos morrer à fome, aos bocados.
P - Da segunda vez o vosso grupo foi obrigado a trabalhar?
R - Nós, não. Os presos políticos, não. Parece que mais tarde , sim, mas nós, o único trabaho que fazíamos era às vezes varrer. Eles não estavam muito interessados em pôr os presos políticos a trabalhar. Houve alguns que trabalharam, sobretudo no <<Grupo dos 75>>. Trabalhavam na carpintaria.
José Craveirinha |
P - Nessa altura, tirando o Rui Nogar, que era branco, havia mais algum branco na prisão?
R - Havia o João Reis, que até escreveu um livro. Não sei se ele ainda está em Macau ou se já está em Lisboa.
P - Havia diferença de tratamento entre os presos, devido à cor da pele?
R - O único que tinha um tratamento, não diria especial, mas que não foi assim muito rigoroso, pois até convinha à PIDE que ele declarasse não pertencer ao nosso grupo, era o João Reis. Quiseram que o João Reis saísse mais cedo. Não queriam que ele se comprometesse profundamente. Soubemos isso lá na cadeia.
O Rui Nogar, não. O Rui Nogar era branco, mas era um branco considerado terrorista como os outros. Era uma pessoa muito coerente, nem sequer admitiria que o pusessem fora. Um dia, foi castigado porque tentou fugir da cadeia. Eu, ele e o Craveirinha estávamos no recreio, era por volta das 19h e estava um bocado escuro, quando o Rui Nogar nos diz: <<Não se preocupem comigo, que agora vou tomar uma decisão>>
P - Lembra-se de, na primeira ou segunda vez, ter visto padres ou pastores prostetantes presos?
Zedequias Manganhela, Pastor da Missão Suiça, assassinado pela PIDE |
P - Da primeira vez, mais ou menos quantos presos políticos se encontravam na cadeia?
R - No princípio não passávamos de 100, mas, passados seis meses, já éraos muitos. Na cadeia da Machava, quando íamos para o recreio, não íamos todos ao mesmo tempo. Aquilo era enorme. Estávamos no Pavilhão 9 e, quando saímos, éramos muitos. Nos outros pavilhões, o número era igual e até maior que o nosso.
Na Cadeia da Machava, os doentes eram todos tratados na enfermaria do Instituto de Investigação Médica, a 13ª Enfermaria. Os presos saíam dali para a enfermaria, ode eram tratadis. Essa enfermaria era praticamente de presos políticos, e o médico do Instituto é que os tratava directamente, fazendo os processos. Quando trabalhava no Instituto de Investigação Médica, era eu que fazia as fichas, mas nessa altura não prestava atenção.
Houve muitos presos polítcos que morreram por doença na cadeia, sobretudo por causa de diarreias muito fortes. E houve vários surtos de cólera.
P - Como é que foi o julgamento, da segunda vez em que foi preso?
R - O Juíz foi o mesmo. Chamou-nos muitos nomes! Os doutores Santa Rita e Antero Sobral reagiram e disseram que <<aquilo que o senhor disse aqui, de os presos serem vermes que andam nos esgotos, lembre-se de que, um dia, o Senhor Promotor de Justiça desta cidade vai conduzir o carro em ruas que terão o nome deles>>.
P - Depois do julgamento saíram em liberdade. Meteu-se mais alguma vez em política? Continuou a pertencer à 4ª Região Militar?
R - Nunca me desliguei da FRELIMO. Sinto-me honrado por dizê-lo, nenhum dos elementos do nosso grupo de presos políticos se divorciou da FRELIMO. Sinto-me honrado por dizer, também, que do grupo dos ex-presos políticos, que foram, depois, fazer um curso político-militar a mando da FRELIMO e em que éramos mais ou menos trezentos, que me recordo, nenhum pertenceu ao ramo rebelde do Mantagaíça, primeiro, ou á RENAMO do Dlakama, depois, quando ele destituiu o Mantagaíça.
P - Esteve no grupo de ex-presos políticos que o presidente Samora reuniu para que cada um contasse a sua prisão. Como é que reagiu?
R - Estive sim. Foi o grupo dos 300.
P - O que se achou disto? Esperava que lhe acontecesse uma coisa dessas?
Não, não esperava. A <<conversa>> o Bureau Político da FRELIMO teve connosco foi, de facto, um encontro muito duro. Compreendemos, depois, com a reacção de alguns de alguns, a razão de algumas das perguntas que foram feitas. Era importante que a FRELIMO tivesse a certeza de que é quem, de quem estava com quem. Foi também importante porque, depois deste encontro, alguns começaram a ser designados responsáveis, inclusivé a nível governamental. Apesar de eu ter pertencido ao grupo que, mais tarde, foi enviado para as províncias, foi já um grupo mais reduzido que foi trabalhar em Nampula, na Zambézia ou em Tete, a nível dos Governos provinciais ou ligados à agricultura. Compreendi que foi uma acção muito importante.
P - Desculpe a pergunta que vou fazer. Mas este grupo que foi trabalhar correspondia a uma tentativa de reeducação dos quadros, era isso que a FRELIMO pretendia?
R - Era uma reeducação dirigida a pessoas que a FRELIMO tinha interesse em que se tornassem quadros. Para mim foi um exame, não só em termos de capacidade, mas também para ver até que ponto se podia ter confiança naqueles elementos, naquelas pessoas. Por isso digo que muitos deles se tornaram grandes responsáveis do partido ou do governo. Eu próprio, quando acabou esse tempo, tive algumas tarefas.
Antes de irmos para as províncias, já tinha assumido o cargo de comissário político no Ministério do Trabalho, área em que era necessário certa confiança, caso contrário não nos tinham atribuído essa tarefa, a mim e ao Daniel Magaia, mesmo antes de irmos para as províncias. Alías até já estava a trabalhar para o Museu Nacional, foi-me dada responsabilidade de criar o Museu Nacional e a Direcção Nacional de Artesanato. Fui também professor, criador daquilo que é hoje a Escola de Artes Visuais, que na altura era o Centro de Estudos Culturais. Tinha, ainda, sido indigitado para dar aulas ao primeiro curso de Formação de Professores da Universidade Eduardo Mondlane. Estava, portanto, na Faculdade Pedagógica, não porque tivesse formação académica mas...
Quando fui mandado para as províncias passámos primeiro por um treino militar em Matalane, onde nasci. Confesso que fiquei triste, porque tinha alunos que tive de abandonar.
Mas o estar na província de Nampula deu-me, de facto, oportunidades muito boas. Nunca tive a intenção de fugir ou de abandonar a província, por ser pintor. E quando acabou o período de três anos e meio, tempo que lá estive, deram-me a missão de sair por seis meses com a exposição que foi então à URSS, à Bulgária, à antiga RDA e a Angola. Quando voltei, fiquei com a responsabilidade na Direcção da Cultura e, mais tarde, na Secretaria de Estado da Cultura, depois Ministério da Cultura.
P - A dada altura, o presidente Samora Machel fez uma grande reunião com os indivíduos afectos ao regime colonial. Que acha da libertação dessas pessoas?
R - Não há nenhum trabalho que não tenha erros, é muito raro. E uma revolução é muito difícil.
A reunião da FRELIMO com os antigos presos políticos, essa conversa em tom de julgamento, para analisar o comportamento de cada um, bem, alguns acharam-na mal. Outros, entre aqueles que não tinham estado presos, riram-se de nós, <<maltratados depois de terem feito um trabalho tão importante>>. Uns diziam-no de forma construtiva, outros até teriam gostado que nos tivessemos rebelado.
Depois dá-se o encontro com os <<comprometidos>>, com aqueles que tinham trabalhado em <<altas funções>>, havendo mesmo alguns informadores da PIDE. A reunião foi ali na Josina Machel e eram muitos.
Estou convencido que a FRELIMO reconheceu a existência de homens com preparação, que era necessário agarrar, até porque alguns trabalhavam já em áreas do Governo. Não do partido, mas do Governo. Alguns eram professores, outros, funcionários públicos. Tinham conhecimentos nas Finanças e noutra áreas.
Estou convencido que a FRELIMO fez a reunião como forma de mantê-los a trabalhar, depois de declararem abertamente terem colaborado com o regime colonial. É o caso de um colega meu, pintor, que durante o regime colonial tinha pertencido à PIDE, de que era informador. Quando lhe deram oportunidade de falar, não foi claro, mentiu. Como eu era pintor e o conhecia bem, chamaram-me para falar com ele, em público, o que o ajudaria, porque ele ora mentia ora se desmentia. Acabou por se retractar.
P - Achou a reunião positiva?
R - Achei. Nem sequer foram presos.
Foram chamados para essa reunião, que se realizou diante das famílias. Nalguns casos, os filhos foram lá, porque havia o receio de que, quando saíssem de lá, fossem para a cadeia. Mas não havia essa intenção.
A FRELIMO, em termos de conduta política, foi sempre muito inteligente. Por isso, não me admira que, a certa altura, começasse a ser atacada, sobretudo quando começou a haver essa grande mudança que se verificou no mundo. Houve uma tentativa de enfraquecer a FRELIMO.
P - Considera que este tema da PIDE e da Guerra Colonial deve ser discutido? Ou acha que se deve <<pôr uma pedra em cima do assunto>>?
R - Acho que o tema deve ser tratado. Não tenho uma grande experiência do que foram as grandes independências do Continente Africano. Mas, olhando para aquilo que foi a África do Sul, onde o racismo foi muito aberto, apesar de ter havido o encontro que Mandela mandou organizar para as pessoas contarem o que fizeram, para se confessarem, pois apesar disso ainda há racismo.
Mas, aqui em Moçambique, apesar de haver pessoas que ainda possam ter raiva, esse racismo não existe. E estou convencido de que a conduta da FRELIMO e do presidente Samora nunca o permitiu. Nunca permitiu que usássemos isso como factor de ódio contra Portugal, de ódio aos portugueses.
Portanto, não é por se continuar a falar daquilo que foi a História, que se vai fazer com que o <<fogo se ateie>>. Não, nem pensar.
Tenho uma experiência que lhe vou contar. Durante o tempo colonial fui a Portugal em 1971 e 1973. Depois nunca mais lá voltei. Mas, em 1983, Samora Moisés Machel, quando foi convidado para ir a Portugal, fez uma reunião e quis que alguns quadros fossem primeiro, uns quize dias antes. Vem, então, uma pessoa ter comigo e diz-me:
<< É preciso fazer uma grande exposição em Portugal. Para essa exposição escolham as melhores obras de pintura e escultura. Façam o melhor programa de actividades culturais, com música, dança e teatro. E levem, também. livros editados em Moçambique>>
Foi-me dito que eu seria o comissário dessa exposição.
<< Tens uma imcumbência do presidente Samora, antes de ele lá chegar. Vais, não só para montar a exposição, mas também para aceitares entrevistas de qualquer jornal, incluindo o DIABO e o DIA>>
Então perguntei:
<<Mas porquê eu? não estou no quadro do Governo, e na FRELIMO sou um simples militante, nem sou um quadro>>
E essa pessoa respondeu-me que Samora só dissera:
<<Deixa esse criado dos Portugueses avançar>>
Porquê?. Porque Samora sabia que tinha trabalhado como criado de várias famílias portuguesas, sabia que tinha trabalhado num clube só de portugueses. Bem, não sei se vai escrever isto, ele sabia que eu não era pessoa que tivesse uma linguagem de rancor. E aquela pessoa acrescentou:
<< Vais ter um encontro antes de partir. Mas ficas a saber que ninguém, nem os que vão montar a exposição, nem os que vão com o presidente, devem ter uma linguagem de ódio para com o povo português.
Foi o ódio à administração colonial que nos fez conduzir a guerra, guerra que fizemos contra a administração colonial portuguesa. Mas o povo português não tem qualquer culpa. Esta filosofia já era anterior, já fazia parte da luta armada. Era preciso saber distinguir a administração colonial portuguesa do povo português. Samora obrigou-nos a compreender isto.
Quando foi dos Acordos do Incomáti, fui a um almoço com os sul-africanos. Tínhamos a incumbência de não nos pronunciarmos contra as pessoas que estavam ao nosso lado a comer. Fiquei na mesa de um milionário, que eu não sabia quem era. Tinham a preocupação de saber se olhávamos para eles como africânderes ou como pessoa.
A filosofia da FRELIMO foi sempre esta. As pessoas não tinham culpa sa administração colonial portuguesa. Por isso não tenho receio e penso que falar do passado não vai criar <<um rio de ódio>> a Portugal. Até porque Samora deu uma grande lição à Europa
Não mandou prender ninguém, não fuzilou ninguém. Isso foi uma grande lição. Tudo isto faz parte da história colectiva destes povos, e esta não pode ser esquecida.
Depois desta minha ida a Portugal em 1983, passei a ir lá regularmente, levando exposições ou na semana cultural de Moçambique. As instituições portuguesas, o Secretário de Estado da Cultura, o Ministério da Educação e outras instituições passaram a <<usar-me>> para participar em congressos sobre a educação, sobre os professores ou sobre outras coisas. Praticamente sou convocado e não convidado. Estou convencido de que, se tivese havido algum ódio, não estaria a ser utilizado, não ponha a palavra entre aspas, estou a ser utilizado para falar sobre cultura ou arte.
Falo sem qualquer ódio, o que não quer dizer que não tenha deparado com algumas piadas de portugueses que reagem de forma provocatória. Não preciso de qualquer ensaio para responder a essas pessoas. Não tenho ódio não sou racista.
Quantas vezes não participo em conferências, que não são organizadas por Moçambique e nem se lembram de me perguntar, se tenho hotel e alimentação. É preciso que alguém ali do grupo se lembre.<<vejam lá, é preciso arranjar alguma coisa para o Malangatana, pois ele veio de fora>>.
Quando estive no Ministério do Trabalho, admitiamos que se dissesse que <<o patrão não tem razão>>, porque era perigoso dizer que <<o patrão tem razão>>. Mas não admitiamos que se dissesse que <<o patrão branco não tem razão>>. Porque não era por ser branco que não tinha razão. E muitas vezes tinhamos confrontos com os patrões e faziamos aqueles encontros no Ministério do Trabalho para apaziguar os ânimos, quando havia problemas de greves ou patrões que não pagavam ou tinham dívidas anteriores. Confrontámo-nos muitas vezes com pessoas que gozavam connosco, com desprezo por nós. E podiamos ter reagido doutro modo. Por exemplo o Drº Bernardo Lopes Afonso, hoje médico em Cabo Verde e que na altura trabalhava connosco. ficava admirado por não reagirmos áqueles gozos. Só uma vez é que reagimos mal com um senhor português. foi quando recebemos a dona de um hotel, uma senhora viúva que queria entregá-lo aos trabalhadores e vinha acompanhada de um trabalhador branco desse mesmo hotel. Ora esse trabalhador começou a falar num português feio, até no sentido gramatical, sem cocordâncias. Parecia que o homem nunca tinha andado na escola! Perguntei-lhe:
<< o senhor está a falar com quem?>>
E ele continuou no mesmo modo:
<<Ah! Sabe que vocês, se calhar vocês não estar a compreender bem, não é? Esta oferta deste male hotel, que é bom para trabalhador, que nunca viste um hotel e agora vais ficar ricos>>
Tornei a repetir:
<<O senhor está a falar com quem? Vem com esta senhora? Peço desculpa, minha senhora, mas este senhor vai já para casa. A menos que queira ficar cá fechado até amanhã. Não admitimos, a menos que este senhor não saiba falar a língua portuguesa, que esteja aqui a insultar duas bandeiras, a portuguesa e a moçambicana, assim como a língua de Camões. Sabe, falamos e aprendemos português na escola. É verdade que muitos de nós, até à idade adulta, não tivemos oportunidade de aprender. Uma coisa é falarmos mal, por não sabermos. E outra coisa é falarmos mal, por querermos rasgar as bandeiras.
O indivíduo continuou a gozar.
Tivemos, pois, coisas deste género.
Entrevista concedida e gravada na cidade de Maputo em Agosto de 2000.
R - No princípio não passávamos de 100, mas, passados seis meses, já éraos muitos. Na cadeia da Machava, quando íamos para o recreio, não íamos todos ao mesmo tempo. Aquilo era enorme. Estávamos no Pavilhão 9 e, quando saímos, éramos muitos. Nos outros pavilhões, o número era igual e até maior que o nosso.
Na Cadeia da Machava, os doentes eram todos tratados na enfermaria do Instituto de Investigação Médica, a 13ª Enfermaria. Os presos saíam dali para a enfermaria, ode eram tratadis. Essa enfermaria era praticamente de presos políticos, e o médico do Instituto é que os tratava directamente, fazendo os processos. Quando trabalhava no Instituto de Investigação Médica, era eu que fazia as fichas, mas nessa altura não prestava atenção.
Houve muitos presos polítcos que morreram por doença na cadeia, sobretudo por causa de diarreias muito fortes. E houve vários surtos de cólera.
P - Como é que foi o julgamento, da segunda vez em que foi preso?
R - O Juíz foi o mesmo. Chamou-nos muitos nomes! Os doutores Santa Rita e Antero Sobral reagiram e disseram que <<aquilo que o senhor disse aqui, de os presos serem vermes que andam nos esgotos, lembre-se de que, um dia, o Senhor Promotor de Justiça desta cidade vai conduzir o carro em ruas que terão o nome deles>>.
P - Depois do julgamento saíram em liberdade. Meteu-se mais alguma vez em política? Continuou a pertencer à 4ª Região Militar?
R - Nunca me desliguei da FRELIMO. Sinto-me honrado por dizê-lo, nenhum dos elementos do nosso grupo de presos políticos se divorciou da FRELIMO. Sinto-me honrado por dizer, também, que do grupo dos ex-presos políticos, que foram, depois, fazer um curso político-militar a mando da FRELIMO e em que éramos mais ou menos trezentos, que me recordo, nenhum pertenceu ao ramo rebelde do Mantagaíça, primeiro, ou á RENAMO do Dlakama, depois, quando ele destituiu o Mantagaíça.
P - Esteve no grupo de ex-presos políticos que o presidente Samora reuniu para que cada um contasse a sua prisão. Como é que reagiu?
R - Estive sim. Foi o grupo dos 300.
P - O que se achou disto? Esperava que lhe acontecesse uma coisa dessas?
Não, não esperava. A <<conversa>> o Bureau Político da FRELIMO teve connosco foi, de facto, um encontro muito duro. Compreendemos, depois, com a reacção de alguns de alguns, a razão de algumas das perguntas que foram feitas. Era importante que a FRELIMO tivesse a certeza de que é quem, de quem estava com quem. Foi também importante porque, depois deste encontro, alguns começaram a ser designados responsáveis, inclusivé a nível governamental. Apesar de eu ter pertencido ao grupo que, mais tarde, foi enviado para as províncias, foi já um grupo mais reduzido que foi trabalhar em Nampula, na Zambézia ou em Tete, a nível dos Governos provinciais ou ligados à agricultura. Compreendi que foi uma acção muito importante.
P - Desculpe a pergunta que vou fazer. Mas este grupo que foi trabalhar correspondia a uma tentativa de reeducação dos quadros, era isso que a FRELIMO pretendia?
R - Era uma reeducação dirigida a pessoas que a FRELIMO tinha interesse em que se tornassem quadros. Para mim foi um exame, não só em termos de capacidade, mas também para ver até que ponto se podia ter confiança naqueles elementos, naquelas pessoas. Por isso digo que muitos deles se tornaram grandes responsáveis do partido ou do governo. Eu próprio, quando acabou esse tempo, tive algumas tarefas.
Antes de irmos para as províncias, já tinha assumido o cargo de comissário político no Ministério do Trabalho, área em que era necessário certa confiança, caso contrário não nos tinham atribuído essa tarefa, a mim e ao Daniel Magaia, mesmo antes de irmos para as províncias. Alías até já estava a trabalhar para o Museu Nacional, foi-me dada responsabilidade de criar o Museu Nacional e a Direcção Nacional de Artesanato. Fui também professor, criador daquilo que é hoje a Escola de Artes Visuais, que na altura era o Centro de Estudos Culturais. Tinha, ainda, sido indigitado para dar aulas ao primeiro curso de Formação de Professores da Universidade Eduardo Mondlane. Estava, portanto, na Faculdade Pedagógica, não porque tivesse formação académica mas...
Quando fui mandado para as províncias passámos primeiro por um treino militar em Matalane, onde nasci. Confesso que fiquei triste, porque tinha alunos que tive de abandonar.
Mas o estar na província de Nampula deu-me, de facto, oportunidades muito boas. Nunca tive a intenção de fugir ou de abandonar a província, por ser pintor. E quando acabou o período de três anos e meio, tempo que lá estive, deram-me a missão de sair por seis meses com a exposição que foi então à URSS, à Bulgária, à antiga RDA e a Angola. Quando voltei, fiquei com a responsabilidade na Direcção da Cultura e, mais tarde, na Secretaria de Estado da Cultura, depois Ministério da Cultura.
P - A dada altura, o presidente Samora Machel fez uma grande reunião com os indivíduos afectos ao regime colonial. Que acha da libertação dessas pessoas?
R - Não há nenhum trabalho que não tenha erros, é muito raro. E uma revolução é muito difícil.
A reunião da FRELIMO com os antigos presos políticos, essa conversa em tom de julgamento, para analisar o comportamento de cada um, bem, alguns acharam-na mal. Outros, entre aqueles que não tinham estado presos, riram-se de nós, <<maltratados depois de terem feito um trabalho tão importante>>. Uns diziam-no de forma construtiva, outros até teriam gostado que nos tivessemos rebelado.
Depois dá-se o encontro com os <<comprometidos>>, com aqueles que tinham trabalhado em <<altas funções>>, havendo mesmo alguns informadores da PIDE. A reunião foi ali na Josina Machel e eram muitos.
Estou convencido que a FRELIMO reconheceu a existência de homens com preparação, que era necessário agarrar, até porque alguns trabalhavam já em áreas do Governo. Não do partido, mas do Governo. Alguns eram professores, outros, funcionários públicos. Tinham conhecimentos nas Finanças e noutra áreas.
Estou convencido que a FRELIMO fez a reunião como forma de mantê-los a trabalhar, depois de declararem abertamente terem colaborado com o regime colonial. É o caso de um colega meu, pintor, que durante o regime colonial tinha pertencido à PIDE, de que era informador. Quando lhe deram oportunidade de falar, não foi claro, mentiu. Como eu era pintor e o conhecia bem, chamaram-me para falar com ele, em público, o que o ajudaria, porque ele ora mentia ora se desmentia. Acabou por se retractar.
P - Achou a reunião positiva?
R - Achei. Nem sequer foram presos.
Foram chamados para essa reunião, que se realizou diante das famílias. Nalguns casos, os filhos foram lá, porque havia o receio de que, quando saíssem de lá, fossem para a cadeia. Mas não havia essa intenção.
A FRELIMO, em termos de conduta política, foi sempre muito inteligente. Por isso, não me admira que, a certa altura, começasse a ser atacada, sobretudo quando começou a haver essa grande mudança que se verificou no mundo. Houve uma tentativa de enfraquecer a FRELIMO.
P - Considera que este tema da PIDE e da Guerra Colonial deve ser discutido? Ou acha que se deve <<pôr uma pedra em cima do assunto>>?
R - Acho que o tema deve ser tratado. Não tenho uma grande experiência do que foram as grandes independências do Continente Africano. Mas, olhando para aquilo que foi a África do Sul, onde o racismo foi muito aberto, apesar de ter havido o encontro que Mandela mandou organizar para as pessoas contarem o que fizeram, para se confessarem, pois apesar disso ainda há racismo.
Mas, aqui em Moçambique, apesar de haver pessoas que ainda possam ter raiva, esse racismo não existe. E estou convencido de que a conduta da FRELIMO e do presidente Samora nunca o permitiu. Nunca permitiu que usássemos isso como factor de ódio contra Portugal, de ódio aos portugueses.
Portanto, não é por se continuar a falar daquilo que foi a História, que se vai fazer com que o <<fogo se ateie>>. Não, nem pensar.
Tenho uma experiência que lhe vou contar. Durante o tempo colonial fui a Portugal em 1971 e 1973. Depois nunca mais lá voltei. Mas, em 1983, Samora Moisés Machel, quando foi convidado para ir a Portugal, fez uma reunião e quis que alguns quadros fossem primeiro, uns quize dias antes. Vem, então, uma pessoa ter comigo e diz-me:
Samora Machel, Graça Machel e Malangatana |
Foi-me dito que eu seria o comissário dessa exposição.
<< Tens uma imcumbência do presidente Samora, antes de ele lá chegar. Vais, não só para montar a exposição, mas também para aceitares entrevistas de qualquer jornal, incluindo o DIABO e o DIA>>
Então perguntei:
<<Mas porquê eu? não estou no quadro do Governo, e na FRELIMO sou um simples militante, nem sou um quadro>>
E essa pessoa respondeu-me que Samora só dissera:
<<Deixa esse criado dos Portugueses avançar>>
Porquê?. Porque Samora sabia que tinha trabalhado como criado de várias famílias portuguesas, sabia que tinha trabalhado num clube só de portugueses. Bem, não sei se vai escrever isto, ele sabia que eu não era pessoa que tivesse uma linguagem de rancor. E aquela pessoa acrescentou:
<< Vais ter um encontro antes de partir. Mas ficas a saber que ninguém, nem os que vão montar a exposição, nem os que vão com o presidente, devem ter uma linguagem de ódio para com o povo português.
Foi o ódio à administração colonial que nos fez conduzir a guerra, guerra que fizemos contra a administração colonial portuguesa. Mas o povo português não tem qualquer culpa. Esta filosofia já era anterior, já fazia parte da luta armada. Era preciso saber distinguir a administração colonial portuguesa do povo português. Samora obrigou-nos a compreender isto.
Quando foi dos Acordos do Incomáti, fui a um almoço com os sul-africanos. Tínhamos a incumbência de não nos pronunciarmos contra as pessoas que estavam ao nosso lado a comer. Fiquei na mesa de um milionário, que eu não sabia quem era. Tinham a preocupação de saber se olhávamos para eles como africânderes ou como pessoa.
A filosofia da FRELIMO foi sempre esta. As pessoas não tinham culpa sa administração colonial portuguesa. Por isso não tenho receio e penso que falar do passado não vai criar <<um rio de ódio>> a Portugal. Até porque Samora deu uma grande lição à Europa
Depois desta minha ida a Portugal em 1983, passei a ir lá regularmente, levando exposições ou na semana cultural de Moçambique. As instituições portuguesas, o Secretário de Estado da Cultura, o Ministério da Educação e outras instituições passaram a <<usar-me>> para participar em congressos sobre a educação, sobre os professores ou sobre outras coisas. Praticamente sou convocado e não convidado. Estou convencido de que, se tivese havido algum ódio, não estaria a ser utilizado, não ponha a palavra entre aspas, estou a ser utilizado para falar sobre cultura ou arte.
Malangatana e Mário Soares numa sua exposição em Évora |
Quantas vezes não participo em conferências, que não são organizadas por Moçambique e nem se lembram de me perguntar, se tenho hotel e alimentação. É preciso que alguém ali do grupo se lembre.<<vejam lá, é preciso arranjar alguma coisa para o Malangatana, pois ele veio de fora>>.
Quando estive no Ministério do Trabalho, admitiamos que se dissesse que <<o patrão não tem razão>>, porque era perigoso dizer que <<o patrão tem razão>>. Mas não admitiamos que se dissesse que <<o patrão branco não tem razão>>. Porque não era por ser branco que não tinha razão. E muitas vezes tinhamos confrontos com os patrões e faziamos aqueles encontros no Ministério do Trabalho para apaziguar os ânimos, quando havia problemas de greves ou patrões que não pagavam ou tinham dívidas anteriores. Confrontámo-nos muitas vezes com pessoas que gozavam connosco, com desprezo por nós. E podiamos ter reagido doutro modo. Por exemplo o Drº Bernardo Lopes Afonso, hoje médico em Cabo Verde e que na altura trabalhava connosco. ficava admirado por não reagirmos áqueles gozos. Só uma vez é que reagimos mal com um senhor português. foi quando recebemos a dona de um hotel, uma senhora viúva que queria entregá-lo aos trabalhadores e vinha acompanhada de um trabalhador branco desse mesmo hotel. Ora esse trabalhador começou a falar num português feio, até no sentido gramatical, sem cocordâncias. Parecia que o homem nunca tinha andado na escola! Perguntei-lhe:
<< o senhor está a falar com quem?>>
E ele continuou no mesmo modo:
<<Ah! Sabe que vocês, se calhar vocês não estar a compreender bem, não é? Esta oferta deste male hotel, que é bom para trabalhador, que nunca viste um hotel e agora vais ficar ricos>>
Tornei a repetir:
<<O senhor está a falar com quem? Vem com esta senhora? Peço desculpa, minha senhora, mas este senhor vai já para casa. A menos que queira ficar cá fechado até amanhã. Não admitimos, a menos que este senhor não saiba falar a língua portuguesa, que esteja aqui a insultar duas bandeiras, a portuguesa e a moçambicana, assim como a língua de Camões. Sabe, falamos e aprendemos português na escola. É verdade que muitos de nós, até à idade adulta, não tivemos oportunidade de aprender. Uma coisa é falarmos mal, por não sabermos. E outra coisa é falarmos mal, por querermos rasgar as bandeiras.
O indivíduo continuou a gozar.
Tivemos, pois, coisas deste género.
Malangatana faleceu em Matosinhos em 5-1-2011. O seu funeral teve honras de Estado. |
Ex.mos,
ResponderEliminarEstou a trabalhar num projecto para a RTP sobre a época colonial, e gostava de utilizar 3 fotografias que se encontram nesta entrevista, a porimeira do Malangatana junto do Atelier de Pancho Guedes, a dos presos da Machava a receberem comida, e a do Craveirinha com Rui Nogar. As fotos são vossas? Seria possível utilizá-las? Obrigado, Bruno Cabral